No julgamento, ainda em curso, do inquérito 2027, examina o STF a questão da responsabilidade penal do Chefe do Poder Executivo pela aplicação de recursos públicos em finalidade diversa da prevista em convênio e contrato.
Na espécie, verba obtida pelo Estado de Rondônia, mediante convênio de repasse de empréstimo contraído pela União junto ao BIRD, destinava-se única e exclusivamente a financiar programa de gerenciamento dos recursos naturais daquela unidade federada (PLANAFLORO). O numerário, todavia, alegou-se na peça acusatória, teria sido sistematicamente transferido da conta bancária vinculada ao programa para a conta única do tesouro estadual, de onde seria “desviado” para fazer face a despesas estranhas ao objeto do acordo, como as relativas ao pagamento de salários de servidores públicos.
Em vista disso, ofereceu-se, contra o então Governador, denúncia subsumindo a sua conduta ao tipo previsto no artigo 20 da lei de crimes contra o sistema financeiro nacional. Pelo recebimento, votaram o Ministro Relator Joaquim Barbosa e os demais indicados abaixo. No trecho ora reproduzido, abriu o Ministro Gilmar Mendes, em voto-vista, divergência, e ratificou o Relator o seu voto.
STF. Destaques da Sessão de Julgamento.
Voto-Vista Divergente do Ministro Gilmar Mendes.
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Inexistência de Descrição Individualizada da Conduta do Co-Denunciado. “Responsabilidade Objetiva do Acusado”. “Prova Negativa”.
Em linhas gerais, o parquet postula, no caso concreto, o recebimento da denúncia ofertada contra o Ex-Governador do Estado por possível desvio de recursos de empréstimo do Banco Mundial ao governo brasileiro, transferidos ao governo de Rondônia mediante convênio assinado entre o Governador e o Ministério do Planejamento e Orçamento.
De pronto, encaminhando o espírito que cerca este voto divergente, vale destacar o seguinte excerto do voto do Ministro Celso de Mello proferido no HC 80812 como se segue:
“Cumpre ter presente, neste ponto, a advertência constante do magistério jurisprudencial desta Suprema Corte, que ao insistir na indispensabilidade de o Estado identificar, na peça acusatória, com absoluta precisão, a participação individual de cada denunciado – e considerada a inquestionável repercussão processual desse ato sobre a sentença judicial –, observa que ‘Discriminar a participação de cada co-réu é de todo necessário (…), porque, se, em certos casos, a simples associação pode constituir um delito per se, na maioria deles a natureza da participação de cada um, na produção do evento criminoso, é que determina a sua responsabilidade, porque alguém pode pertencer ao mesmo grupo, sem concorrer para o delito, praticando, por exemplo, atos penalmente irrelevantes, ou nenhum. Aliás, a necessidade de se definir a participação de cada um resulta da própria Constituição, porque a responsabilidade criminal é pessoal, não transcende da pessoa do delinquente (…). É preciso, portanto, que se comprove que alguém concorreu com ato seu para o crime (RTJ 35/517, 534, Rel. Min. Victor Nunes Leal).’
Tem-se, desse modo, que se revela inepta a denúncia sempre que – tal como no caso ocorre – a peça acusatória, sem especificar a participação dos acusados, vem atribuir-lhes virtual responsabilidade solidária pelo evento delituoso, pelo só fato de pertencerem ao corpo gerencial da empresa (RHC 50.249, Rel. Min. Xavier de Albuquerque).
Se há compromisso da lei com a culpabilidade, não se admite responsabilidade objetiva, decorrente da imputação genérica, que não permite ao acusado conhecer se houve e qual a medida da sua participação no fato, para poder se defender
Desconhecendo o teor preciso da acusação, o defensor não terá como orientar o interrogatório, a defesa prévia e o requerimento de provas, bem assim não terá como avaliar eventual colidência de defesas entre a do seu constituinte e a do co-réu. O acusado será obrigado a fazer prova negativa de que não praticou o crime, assumindo o ônus da prova que é do Ministério Público, tendo em vista o princípio constitucional da presunção de inocência.
A denúncia genérica, nos crimes de sonegação fiscal, impossibilita a ampla defesa e, por isso, não pode ser admitida.”
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Responsabilidade Penal do Administrador Público Pelos Atos Praticados Por Seus Auxiliares Diretos.
Em princípio, seria possível estabelecer uma relação de presunção no sentido de que o administrador ou agente público conheça os fatos relativos à sua administração, responsabilizando-se pela conduta dos seus auxiliares diretos. Isto, entretanto, não prevalece em de modo absoluto na seara penal. Crime é ato pessoal do agente, não se admitindo, pelo menos como regra geral do ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade penal objetiva. Não posso concordar, data vênia, com os fundamentos expendidos pelo Relator e pela Procuradoria Geral afirmando ser suficiente para atribuir ao atual senador Valdir Raupp o cometimento de crime contra o sistema financeiro nacional pelo simples fato de na época exercer o cargo de governador do Estado e de haver firmado o convênio com a União, comprometendo-se a não aplicar os recursos em finalidades diversas da pactuada, segundo alegadamente ocorrido. Trata-se, a meu ver, de um quadro preocupante na seara da responsabilidade penal objetiva.
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Análise da Conduta Supostamente Criminosa e de Seu Nexo Causal com o Resultado.
Olhando especificamente para o caso deste inquérito, ainda que pudéssemos conceber hipóteses de responsabilização criminal de um governador de Estado em razão de um determinado desvio de verba para finalidades distintas daquelas para as quais eram destinadas, certamente teríamos que, no mínimo zelar, por um compromisso de consistência em relação a esse aspecto elementar do direito penal, que é a vinculação entre o fato e seu autor.
No caso concreto, considerando a palavra causa em sua perspectiva penalmente relevante, indago: o paciente praticou fato que constituiu causa para a ocorrência do eventual desvio de verbas?
Com o devido respeito, sequer uma relação causal naturalista está bem descrita nesta denúncia. A descrição do evento danoso está clara, trata-se de um desvio de verbas, mas a relação de causa e efeito entre a conduta do paciente e o desvio dos recursos não estão nada claras. Não me impressiona o argumento utilizado no sentido de que a apreciação das alegações exigiria dilação probatória. Da leitura da denúncia, penso, resta evidente uma notória lacuna na tentativa de vincular, com gravíssimos efeitos penais, a conduta do ex-governador de Rondônia e o desvio de recursos. Precisamos, aqui, refletir sobre isso. Houvesse relação de causa e efeito entre uma ação ou omissão do ex-governador, deveria o órgão do Ministério Público explicitá-la de modo consistente, e se houvesse consistência penso que a cadeia causal dificilmente ocorreria diretamente entre um ato do governador do estado e o desvio de um recurso de projeto PLANAFLORO, segundo a denúncia operado diretamente por gestões desta, consoante assinaturas lançadas em requisições de transferências dirigidas ao Banco do Brasil, nada, porém, demonstrando a atuação direta ou indireta do então governador.
O que quero evidenciar é que, se há um evento danoso, se há uma tentativa de responsabilização individual, um pressuposto básico para isto é a demonstração consistente de relação de causalidade entre o suposto agente criminoso e o fato. Não vejo, com a devida vênia, como imputar o evento danoso descrito na denúncia a Valdir Raupp de Matos, caso contrário, sempre que constatada qualquer aplicação de recursos vinculados ao estado de forma tida por indevida, haveria imediata responsabilização do governador ou do chefe do poder-executivo, fazendo-se necessário, antes, aprofundado exame investigatório para a propositura da ação penal.
Qual é a conduta objetivamente imputada ao então governador do estado afora o fato de exercer o cargo?Com o máximo respeito, acreditar que qualquer transferência de recursos ocorrida no âmbito do estado possa representar um ato criminoso de seu governador pelo simples fato de haver assinado o convênio de transferência de recursos obtidos pelo governo federal junto ao BIRD, sem ao menos empreender investigações que pudessem colher ao menos indícios de sua participação afigura-se para mim no mínimo um excesso.
Ratificação de Voto do Ministro Relator Joaquim Barbosa.
Os argumentos da defesa não são suficientes a meu ver para, de plano, conduzir ao arquivamento do inquérito e negar seguimento à denúncia.
No que concerne ao argumento da atipicidade da conduta, pautado na alegada inexistência de dolo, esta é uma questão a ser aferida no bojo da ação penal, pois somente após o encerramento da instrução, devidamente analisadas as provas de defesa e de acusação é que se pode concluir sobre a sua configuração, ou não. É o pacífico entendimento desta Corte, já que no momento da denúncia basta a existência de indícios contra os denunciados, aplicando-se o princípio do in dubio pro societatis.
De outro lado, a denúncia não imputa aos acusados uma ordenação de despesa indevida, mas sim a ilícita transferência de recursos que deveriam ser aplicados estritamente no PLANAFORO, e que inversamente, teriam sido transferidos para a conta do Tesouro tão logo entraram na conta do referido projeto. A acusação afirma, portanto, que o denunciado Valdir Raupp, então na condição de governador, determinou aos seus subordinados hierárquicos – o secretário da fazenda e os membros do PLANAFLORO – a transferência desses recursos para a conta única do tesouro com vistas a empregá-los em outros fins que não a consecução do objeto do convênio firmado com a União.
Neste passo, anoto que a denúncia encontra-se devidamente instruída com indícios de autoria e de materialidade do crime, colhidos ao longo do inquérito policial.
O Ministério Público acusa os denunciados de destinarem parte dos recursos do convênio para outras finalidades, transferindo-os da conta do PLANAFLORO para a conta única do tesouro estadual, onde teriam sido utilizados para ‘saldar despesas diversas’. Tais fatos a meu sentir subsumem-se perfeitamente ao tipo penal previsto no art. 20 da lei 7492.
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