Recentes alterações introduzidas pela lei 12008/2009 no tocante à denominada “prioridade processual” instituíram, em relação aos deficientes, um quadro normativo à primeira vista incompreensível, consistente na expressa previsão do direito ao benefício em se tratando de procedimento administrativo federal, e na sua sonegação (ao menos aparente) na hipótese de “processo judicial”.
Podem ser assim enunciados os termos da equação de que se passa a tratar: cuidando-se de procedimentos administrativos, são três os discrímens autorizadores da incidência da norma: idade, doença grave e deficiência (física ou mental). Esta última – a deficiência – não está, porém, prevista no dispositivo que regulamenta a matéria no território dos “processos judiciais”. Eis as redações dadas pela referida lei aos preceitos que versam sobre o tema:
Esclarecimento Sobre as Diversas Redações dos Preceitos Relativos às Doenças Graves.
Convém consignar, para evitar que seja toldada a visão do intérprete, que as distintas redações dos respectivos preceitos em relação às enfermidades graves não alteram a formulação do problema. Consiste a diferença simplesmente em haver enunciado o legislador, ao Administrador, as principais moléstias ensejadoras da concessão do benefício (ope legis), ao passo em que cometeu, ao Magistrado, a incumbência de estabelecê-las (ope iudicis). Não é este o local para dizer do acerto da medida; basta, nesta sede, registrá-la, para evidenciar que por sob a diversidade de redações subsiste a unidade do discrímen: doença grave.
Disparidade de Tratamentos Dispensados ao Deficiente em Matéria de Prioridade na Tramitação de Procedimentos Administrativos e “Processos Judiciais”
Do cenário que se vem de descrever, exsurge naturalmente a indagação: Que terá levado o legislador a conferir tratamentos díspares a situações tão semelhantes? Conceder aos deficientes expressamente o direito à tramitação prioritária apenas no campo do procedimento administrativo, mas não no território do “processo judicial”, é coisa, para dizer o mínimo, incongruente.
Tal incongruência raia o disparate se se tem presente o fundamento do voto (posteriormente retificado no ponto) do Senador Eduardo Suplicy ao apreciar o então projeto de lei na CCJ:
Por fim, a extensão do regime de prioridade aos processos administrativos não nos parece adequada.
O propósito inicial do projeto é trazer celeridade aos processos judiciais, cuja tramitação é inaceitavelmente morosa. Os processos administrativos, em grande, parte, têm tramitação mais célere que não justifica a quebra da ordem cronológica de tramitação.
Entendamo-nos quanto a isso: se os procedimentos administrativos teriam, segundo o parlamentar, duração satisfatória, então evidentemente caberia assegurar aos deficientes o benefício ali onde ele se faria, de acordo com tal raciocínio, necessário: nos processos em trâmite na “Justiça”. Cingi-lo aos procedimentos já céleres seria conferir aos beneficiários um direito pouco útil, quando não de todo inócuo.
O Projeto de Lei do Senado – Concessão do Benefício Apenas aos Portadores de Doenças Graves. A Expectativa de Vida como Ratio Legis.
O projeto de lei nº 145/2004, da autoria do Senador César Borges, estendia, para além dos idosos, apenas aos portadores de doenças graves o benefício da tramitação prioritária[1], não contemplando os deficientes Adotou-se a expectativa de vida como ratio legis. Eis a justificativa apresentada pelo autor do texto primitivo:
Essas mesmas razões nos levam a propor que também aqueles portadores de doenças graves beneficiem-se da mesma medida, tendo em vista a maior probabilidade de que venham a falecer antes da prestação jurisdicional, em relação àqueles cujo estado de saúde permitem-lhe esperar por um maior tempo até a solução definitiva do seu processo judicial.
O Substitutivo da Câmara – Extensão de Deliberada do Benefício aos Portadores de Deficiência Física Ou Mental.
Partiu da Câmara a iniciativa de, mediante substitutivo, estender a prioridade aos portadores de deficiência. Do parecer do Relator do projeto na CCJ, Deputado Geraldo Pudim, transcreve-se:
Também acreditamos que o regime diferenciado de tramitação deva ser estendido às pessoas portadoras de deficiência, física ou mental (PLs 5.380, 5.627 e 5.856, de 2001; 5.182 e 5.599, de 2005), bem como àquelas vítimas de acidente de trabalho ou portadoras de doença profissional (PLs 5.000, de 2001; 5.182 e 6.748, de 2005).
Apartou-se a Câmara, deliberadamente, da expectativa de vida como ratio. Decidiu aquela Casa, por outros motivos, conceder o benefício também aos portadores de deficiência. Da justificativa apresentada pelo autor do Projeto de Lei 5627/2001, mencionado no substitutivo[2], Deputado Odelmo Leão, colhe-se:
Tenho para mim, entretanto, que a lei [10.173, que outorgava o benefício apenas aos idosos] poderia ter sido mais abrangente, conferindo o benefício da prioridade na tramitação às pessoas portadoras de deficiência.
Justifica-se a alvitrada extensão, não apenas pelas evidentes razões humanitárias que a embasam, senão pela proteção que o Estado deve conferir às pessoas portadoras de deficiência, na esteira do que preconiza o art. 24, XIV, da Constituição Federal, e do que já prevê a Lei nº 10.098 de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoa portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.
Redações Idênticas, no Substitutivo, aos Preceitos Relativos a Procedimentos Administrativos e Processos Judiciais.
Um dado relevante merece destaque, qual seja o de que as redações dos preceitos que regulamentariam a matéria nos âmbitos administrativo e judicial eram, no substitutivo da Câmara, substancialmente idênticas.
Vicissitudes da Apreciação do Substitutivo Pelo Senado – Exclusão Involuntária dos Deficientes.
Ao apreciar o substitutivo, o relator da matéria na CCJ do Senado entendeu que seria inadequado inserir, no CPC, a lista das enfermidades ensejadoras da concessão do benefício; tal medida somente poderia ter lugar, segundo o parecer, em relação à Administração. Para escoimar o texto da norma deste vício é que se rejeitou a redação elaborada pela Câmara. Da manifestação, transcreve-se:
Cumpre observar que a concessão da prioridade deve se limitar aos idosos e aos portadores de doença grave, de modo que se suprima a indicação expressa de todas as doenças consideradas graves, por se tratar de matéria estranha ao CPC.
Ao que tudo indica, portanto, pretendia o legislador abolir somente a discriminação taxativa das moléstias. A poda alcançou, porém, também o inciso II, mas aí sem haver se apercebido o Senado que dela resultaria a exclusão dos deficientes do rol dos beneficiários. Não atendeu, assim, aquela Casa ao fato de não se subsumir a deficiência ao conceito de doença grave. Robustecem tal inferência o fato de inexistir, no voto, censura à extensão do benefício promovida pela Câmara, e de ela haver sido mantida no tocante aos procedimentos administrativos federais.
Conclusões
1) Em nosso direito positivo, as alterações promovidas pela lei 12008/09 instituíram tratamentos díspares para situações substancialmente idênticas: assegura-se expressamente ao deficiente o direito à prioridade da tramitação em procedimentos administrativos federais, mas não em “processos judiciais” .
2) Com base nos documentos disponibilizados pelas duas Casas do Parlamento é possível estabelecer e inferir que:
2.1) O projeto de lei 145/2004 do Senado conferia apenas aos idosos e portadores de doenças graves o direito ao benefício da prioridade na tramitação processual, tendo como ratio legis a menor expectativa de vida dos pertencentes a essas classes de jurisdicionados.
2.2) Na Câmara, deliberadamente estendeu-se o direito à tramitação prioritária aos deficientes, com base no inciso XIV, do art. 14 da CF. O substitutivo oriundo daquela Casa continha dispositivos com redações substancialmente idênticas em matéria de procedimentos administrativos e “processos judiciais”.
2.3) Ao apreciar o referido substitutivo, pretendeu o Senado suprimir, da regulamentação dos “processos judiciais”, apenas a enumeração exaustiva das doenças graves. Extinguiu, porém, inadvertidamente também o dispositivo que assegurava o benefício aos portadores de deficiência física ou mental.
Não pode subsistir, é evidente, a diversidade de tratamentos. Vários desfechos são, de lege lata, concebíveis, mas abordá-los todos alongaria demasiadamente a presente comunicação. O que não se pode é admitir que seja possível à Administração conceder aos deficientes o benefício e, ao Judiciário, não.
Uma Observação Final
À guisa de fecho dessas considerações, vem a propósito a lição de Barbosa Moreira:
Independentemente da solução em tese correta para o problema, o texto aprovado pelo Parlamento fará proliferar recursos contra as decisões sobre a matéria. Indeferido o benefício ao deficiente, agravará ele de instrumento ao Tribunal; concedido, poderá o seu adversário insurgir-se contra o pronunciamento. Eis aí o resultado da incúria legislativa: uma norma elaborada com vistas a abreviar a duração dos feitos arrisca-se a produzir o resultado oposto. Se não é possível, desde logo, afirmar que ela logrará alcançar a prometida celeridade, já se pode averbar, sem margem de erro, que acarretará o aumento da carga de trabalho de Magistrados e demais operadores jurídicos…
Notas
[1] A Comissão de Constituição e Justiça do Senado sufragou, nesses termos, a tese:
(…) muitos dos enfermos, se não lhes for concedida prioridade nos processos em que sejam partes ou interessados, não viverão tempo suficiente para alcançar o resultado de suas pretensões.
Impende agora seja um desses benefícios estendido ao enfermo grave, de qualquer idade, necessitado de compensação social por sua debilidade, o que dará à iniciativa concretude jurídica compatível com a lição de Ruy Barbosa, de que não há igualdade quando se trata igualmente os desiguais.
Assim, no mérito, a proposição merece ser aprovada, para que a Sociedade e o Estado concedam ao enfermo grave a prioridade de que necessita para alcançar o resultado nos processos de seu interesse.
[2] Quanto aos demais Projetos de Lei citados no substitutivo, eis as justificativas apresentadas por seus autores a confirmar o que se assevera sobre a extensão do benefício e sua ratio:
- PL 5856/01, Deputado Edinho Bez:
Penso que as pessoas portadoras de qualquer tipo de deficiência, assim como os doentes em fase terminal, merecem o direito de ter resolvido logo suas pendências processuais. Por exemplo, existem casos de processos previdenciários pendentes, prejudicando inclusive aposentadorias dos deficientes físicos e mentais, estendendo aos seus familiares
- PL 5599/2005, Deputado Antônio Carlos Biscaia:
A doutrina jurídica denomina “hipossuficientes” os grupos sociais que, em razão de suas condições de fato, têm menores possibilidades de exercer plenamente sua cidadania. As leis que contemplam essas especificidades, garantindo meios e instrumentos para que tais coletividades tenham uma melhor qualidade de vida, refletem o aprofundamento da democracia em nosso País, porque superam os limites da igualdade jurídica formal, em favor de uma maior isonomia de fato entre os cidadãos.
No que se refere aos portadores de deficiência, já há normas nesse sentido; por exemplo, a Lei n.º 8.899/1994, que concede passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual; a Lei n.º 8.989/1995, que dispõe sobre a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados para a aquisição de automóveis; e a Lei n.º 10.048/2000, que confere prioridade de atendimento em estabelecimentos que especifica.
O projeto de lei que ora propomos, por sua vez, quer estender aos portadores de deficiência o justo direito que a Lei n.º 10.173/2001 garantiu aos idosos: o de prioridade nos procedimentos judiciais de que sejam parte.
Por considerar que tal medida contribuirá para a promoção social de nossos concidadãos, solicito o apoio dos nobres pares para a sua aprovação.
Vocês mencionam o inciso XIV, do art. 14 da CF na conclusão. Porém, o art. 14 da CF não possui inciso XIV. Gostaria de saber a qual artigo vocês se referem.
ResponderExcluirsou leigo e me desculpe.. sou deficiente fisico uso uma cadeira de rodas, tenho um processo por danos moraes contra uma empresa de transporte terrestre, eu gostaria de saber se eu tenho direito a prioridade no julgamento do processo.. meu email é ribmelo@hotmail.com por favor me ajude..
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